Uma pequena cidade dos mortos se esconde em uma cripta sob o Ospedale Maggiore, um hospital público no centro de Milão, onde, de 1637 a 1693, os corpos de cerca de 10 mil pacientes foram descartados e enterrados. Estabelecida em 1456, a instalação, apelidada de Grande Fábrica, tinha uma missão: fornecer assistência aos doentes e feridos, particularmente aos mais pobres.
“Ao contrário das instituições religiosas da época, recebia pessoas de qualquer etnia ou religião, marcando uma mudança significativa para uma abordagem mais universal da cura”, afirma o historiador Folco Vaglienti, da Universidade de Milão.
Em 2018, o bioarqueólogo Mirko Mattia, da Universidade de Milão, e uma equipe de pesquisa começaram a examinar os restos mortais nos túmulos. Desde então, eles têm estudado ossos encontrados na cripta para entender melhor a saúde, a dieta e o uso de drogas dos habitantes de Milão do século 17.
Os serviços médicos da Grande Fábrica, com tratamentos e terapias pioneiros, eram inigualáveis em toda a Europa. Suas quatro alas foram construídas ao redor de uma igreja central, a Chiesa della Beata Vergine Annunziata, proporcionando a milhares de pacientes cuidados especializados em enfermarias separadas para ossos quebrados, tuberculose e outras condições.
O hospital estava equipado com sua própria infraestrutura, incluindo um sistema de esgoto, cozinhas, lavanderia e farmácia. Durante os anos 1600, uma cripta foi construída sob a igreja. Composta de 14 câmaras, todas com cerca de 2,1 metros de altura, os sepulcros cobrem uma área de mais de 362 metros quadrados.
As câmaras funerárias formavam uma espécie de cemitério subterrâneo para indigentes. Depois que uma tampa de granito era removida de um dos buracos no piso da igreja, os corpos eram lançados em uma das tumbas revestidas de tijolos. Com o tempo, os cadáveres se acumulavam e formavam uma pilha em forma de funil.
Essas pirâmides de restos mortais cresceram ao longo do tempo, alargando-se na base e afinando até um ponto no topo. Quando atingiam o teto e não podiam receber mais corpos, uma nova cripta subterrânea era utilizada.
Ao contrário das camadas inferiores, que continham esqueletos individuais, as superiores eram uma mistura caótica de ossos de muitos pacientes, junto com um resíduo escuro, semelhante a solo, de tecido humano e poeira microscópica de ossos. Essa desordem foi provocada pelo uso prolongado da cripta e pela luta constante do hospital para abrir espaço para mais corpos.
Ao combinar os registros de pacientes da Grande Fábrica com os Mortuorum Libri da cidade, um registro de óbitos mantido no Arquivo do Estado desde 1451, a equipe de pesquisa descobriu que o ossuário contém restos mortais de homens e mulheres de todas as idades, desde fetos até idosos. Estimativas iniciais sugerem um alto número de homens.
O propósito inicial da cripta foi frustrado pelo seu ambiente. Era destinada a ser uma área de retenção para cadáveres até que tivessem se decomposto o suficiente para serem transferidos para um cemitério nos arredores da cidade. Mas a decomposição foi dificultada pela alta umidade e má ventilação, resultado de inundações periódicas e da proximidade com um aquífero.
Vários fatores levaram ao fechamento da cripta em 1693: a preservação incomum dos cadáveres nas câmaras frias e úmidas; os desafios para recuperá-los; e um odor tão repulsivo que fazia as freiras na igreja desmaiarem. Em 1697, um novo local de sepultamento foi aberto, a Rotonda della Besana, que permaneceu em uso por meio século.
Pesquisadores do hospital e da Universidade de Milão começaram a examinar os túmulos em 2010; a escavação começou oito anos depois. Os artefatos eram escassos; em sua época, a Grande Fábrica era conhecida por vender as roupas e outros pertences dos mortos. Mattia e seus colegas ficaram surpresos, então, ao descobrir um conjunto de cinco moedas de ouro de 400 anos de idade, de Veneza, Espanha e França, sob os esqueletos.
Mattia descartou a possibilidade de que o dinheiro viesse de um bolso ou de uma bolsa; pacientes mortos eram despidos e envoltos em lençóis antes de serem baixados às câmaras. Ele levantou a hipótese de que um comerciante viajante, temendo ser roubado enquanto estivesse hospitalizado, havia engolido o espólio, uma tentativa fatal de ocultação.
“O que torna isso estranho é que a Grande Fábrica tratava apenas os indigentes”, diz Mattia. “Antes de serem admitidos, os pacientes passavam por um processo de triagem onde eram obrigados a fornecer documentação de sua pobreza e declarar: ‘Eu sou pobre’.”
Robert Mann, um forense da Universidade do Havaí em Manoa que examinou a cripta da Grande Fábrica, mas não é um participante direto do estudo, afirma que o local fornece um quadro mais completo da história e evolução de traumas, tratamentos médicos, doenças infecciosas e taxas de sobrevivência daquele período.
Mattia diz que a análise de mais de 300 mil dos aproximadamente 2 milhões de ossos na cripta revelou uma população de pacientes afligida por doenças e desnutrição. Havia evidências de cirurgias, autópsias e tratamentos usando chumbo, mercúrio e outros metais pesados. Também havia vestígios de drogas, incluindo Cannabis e coca.
A placa fossilizada nos dentes ofereceu pistas sobre as dietas dos pacientes, que incluíam grãos comuns como trigo, cevada, sorgo, arroz e milheto. Também apresentava amido de batata, apontando para a influência inicial dos alimentos do Novo Mundo, e esporos de cavalinha, uma samambaia com caules verdes não floridos que podem ser tóxicos em grandes quantidades. A descoberta confirma relatos contemporâneos de pessoas que, desesperadas pela fome, comiam grama e morriam com a boca tingida de verde.
“Sabemos mais sobre os plebeus da Roma antiga do que sobre a pessoa comum do século 17”, afirma Mattia. “A história tende a se concentrar em grandes eventos políticos e militares, ignorando a vida dos cidadãos comuns.”
Fonte ==> Folha SP – TEC